sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

White Noise

Detenho-me uns curtos segundos a olhar-me nos olhos! Embora a ânsia se apodere de mim, refreio-me para tentar de vez descortinar a tal de alma que parece estar nas minhas córneas. Nada! Não está lá nada! Apenas dois círculos castanho-verde que cada vez mais são ocultados pela negritude da pupila. Que vejo eu enquanto fico estático, e debruçado sobre a mesa onde está o espelho? Apenas a mossa da idade, a pele papuda das olheiras, as maçãs-do rosto com um aspecto inchado por força da gravidade e pelo facto de eu estar a olhar para baixo. O espelho reflete uma cor homogénea, rosada, mas no meio destaca-se um pequeno pormenor branco, muito branco. Estes breves instantes de alheamento são bruscamente interrompidos por um toque no lombo e uma voz meio nervosa:
-Despacha-te, foda-se!
Voltei a mim, assenti, peguei no tubo e risquei a linha. Dentro de breves minutos todas as minhas dúvidas existênciais iriam desaparecer, não tarda nada já iria ter todas as certezas do mundo, deixando para trás todas essas minudências que me tolhiam a capacidade de raciocínio lógico, a sensatez na tomada de decisões, a falta de amor-próprio, a ausência total de um "self"... A clareza cristalina iria surgir, e com ela também viria o magnânimo "Eu".

Este episódio deu-se há 5, 6 anos. Embora insignificante na altura, foi um ponto-chave na minha vida. Só uns tempos mais tarde tive consciência dele, numa daquelas alturas em que edito a "timeline" da minha vida, quando faço uns "inserts" aqui e ali. É a forma que tenho de recordar, de achar algum sentido. Pego nas memórias, alinho-as e tomo como ponto de referência cronológico, episódios marcantes. São os meus "keyframes", assim não há falhas de "raccord". São também estes mesmos "keyframes" que me permitem chegar a uma conclusão quando faço o resumo da história. Embora seja sempre tarde demais, permitem-me por vezes exorcizar ou compreender a causa do tormento do passado.
Este pequeno instante descrito foi quando percebi que a juventude tinha ido de TGV, foi quando percebi que já era um adulto retardado e que me negava a despir a pele da inconsequente adolescência. Foi quando conheci um outro "eu" demoníaco, assombrado e completamente desconhecido.

Hoje tive um "keyframe"! Novamente em frente a um espelho, mas este estava pendurado na parede e eu estava sozinho. Nada de acessórios, comportamentos desviantes, companhias bizarras, estava apenas na banalidade do acto de lavar as mãos depois de ter mijado.
Eu e o pseudo-silêncio. Pseudo, sim, há sempre som, aquele ruído que se espalha em todo o espectro da frequência audível, aquele silvo que ignoramos, aquele "sssssssssssssssssss"... Só mesmo no vácuo nos livramos dele, algo intangível, humanamente impossível mas que ainda assim gostaria de conhecer.
Olho para mim, é inevitável, mas sem contemplações, sem qualquer tipo de vislumbre de algo que está para lá do óbvio da realidade, olho-me porque é um reflexo natural, tal como é o pentar com os dedos, o afagar de cabeça, o certificar que existe ainda amor-próprio. É neste preciso instante que vislumbro uma tonalidade capilar diferente, algo novo. A hegemonia do marrom foi assaltada pela clareza cristalina de apenas um fortuito branco. Apenas um... Mas parece que há mais!

Para os meus contemporâneos, os gajos que assistiam ao Hino Nacional no final da emissão, ou para os de faixa etária mais recente, quando desligam a ficha da antena da TV, informo que "White Noise" é o som ruidoso que ouvem, o tal "ssssssssssssssss".
O branco fascina-me, é supostamente uma cor de paz, tranquilidade, mas eu venero-o, traz-me recordações, conclusões, ânsias, claridade, alegria, tristeza e também me avisa que já sai do horário nobre, que a emissão entrou agora na recta final. Seguirão os programas da treta, o resumo das notícias, o hino, a mira técnica e finalmente o "white noise". Depois disto não sei, ninguém sabe, mas quero acreditar que é a paz, o branco e o silêncio absoluto.

1 comentário:

Anónimo disse...

Silencio absoluto?

Isso nao existe meu, isso é um ideal teu.
Mas as pessoas falam demais , isso sim!