quinta-feira, 15 de abril de 2010

Sal e a lista de compras

Após almoço, sentado à minha secretária, estou em pânico. Com a mão esquerda esfrego a cara e deslizo-a para o cabelo, ao mesmo tempo que bufo e esbugalho os olhos. Nesse mesmo instante chega a Sal, uma colega de trabalho que mudou de nome só por causa da indumentária que mais gosta. Sal é petit nom de Salwar. À parte desta pequena obsessão, tem um hábito bem mais estranho, gosta de beber cafés sem os pagar. Todos os dias arranja desculpas, cada uma mais esfarrapada que a outra... ou esquece-se da carteira, ou não tem trocado (esta bastante útil, já que a máquina só funciona a moedas), mas a minha preferida é aquela em que menciona o cavalheirismo à moda antiga, um dogma que necessita de ser revitalizado, e que me dá a mui nobre honra de o perpetuar, jurando a pés juntos que a vez de ela pagar é por altura das calendas gregas.
Sal repara no meu gesto, e enquanto despe o casaco, interroga-me o que me preocupa, o porquê do bufar e daquela cara de preocupação psicótica. Digo-lhe que necessito de escrever qualquer coisa não há nada que me ocorra, estou completamente apagado e tudo me parece fútil, óbvio, demasiado revelador, demasiado íntimo, enfim, nada me parece agarrar para matraquilhar no teclado. Em tom de gozo ela sugere que eu lhe escreva a lista de compras, talvez encontre nos perecíveis algo apropriado para o meu texto. Isto talvez tenha sido uma indirecta, um paralelismo entre o curto prazo de vida de um iogurte e a podridão imediata das minhas narrativas. Mesmo assim concordei, não achei nem boa nem má ideia, afinal já fui buscar inspiração a coisas bem mais improváveis, outrora encontrei a minha heterossexualidade num búzio!
Primeiro consultei a Home Page do supermercado em que as compras iam ser feitas, procurei a planta onde está esquematizada a disposição dos diversos produtos. Sal começa então a ditar as faltas e eu comecei a escrever:

-Café .........................2 emb
-Sumo Laranja .................2 garraf 1.5L
-Agua caramulo ................2 garraf. 5L
-Vodka Eristoff ...............1 Garrf. (aqui não respeitei o pedido e emendei para Moskovskaya)
-Manteiga Magra President .....1 Emb 250g
-Bifes de Frango
-Presunto .....................500g
-Camarão cozido-médio..........1Kg

Sal parece estar como eu, esquecida das suas falta ou apenas tem outros pensamentos que se sobrepõem às carências básicas de uma dispensa. E equanto ela olha para cima e para a esquerda tentado visualizar a imagem dos produtos que têm lugar vago no armário, sorrateiramente acrescento quase como por instinto de sacanice mais um item à lista. Talvez por necessidade de exteriorizar algo ou apenas por achar engraçado escrevi:

-Eutimia ......................Q.B.

Passo-lhe a lista com uma planta do supermercado em anexo, em que desenhei uma espécie de mapa do tesouro ou a solução de um labirinto, é o caminho mais directo para os escaparates e prateleiras certos de modo a minimizar o tempo perdido. Junto também uma estatística das horas menos movimentadas consoante os dias da semana e dos meses. No fundo aplico o conceito "Just in Time", talvez por ter um sentido prático muito grande ou então porque tento compensar em pequenas coisas o meu "Mau Timing". Seja como for, eu sei que a Sal pertence à pequena percentagem de mulheres que detesta fazer compras... em supermercados, claro!
Ela confere a lista, agradece o meu empenho, mas chega ao fim da lista e faz cara feia. Dispara uma série de perguntas, umas a seguir às outras, quase comendo as sílabas de cada palavra:

-Eutimia? Que merda é esta? Mas tu estás a gozar comigo meu filho da puta? Aposto que isto tem alguma relação com os teus deboches, com as tua vida triste e tóxica. Não basta tu fazeres figuras bizarras também queres que os outros sejam iguais a ti? Estou mesmo a ver, eu pergunto a um funcionário onde está a Eutimia e no mínimo sou ridicularizada através de gargalhadas estridentes. Na pior das hipóteses sou expulsa...

Neste momento fiquei aterrado, a minha brincadeira inocente não contou com o facto de Sal não saber o significado de tal palavra. Ela conhece-me, sabe que nunca fujo muito ao meu próprio padrão de imoralidade. Mas senti-me irado, talvez pela falta de confiança que todos têm em mim ou pela minha incapacidade de fazer rir alguém. O típico escritório em pladur começou a transformar-se numa sala anecóica, com os relevos dos absorventes de som, toda branca, muito branca, iluminada por potentes luzes difusas encastradas no chão, a roçar os 6500ºK. Sal estava num extremo e eu no outro. Esqueci-me da expressão "Gato escaldado de água fria tem medo", esqueci-me do quão demoníaco posso ser, e disparei num tom de cólera em crescendo:

-Eutimia, Salwar, eutimia... Que merda será a Eutima? Será um conceito inventado por mim num desejo imenso de pertencer a algo, a alguma coisa? Será a minha busca incesante de enquadramento? Será um novo jogo perverso, uma parafilia onde busco cada minuto, cada segundo, um flash de paixão? Será o estado de Clareza Cristalina, de extâse e clarividência, de sentir cada sinapse a disparar proporcionado pelo consumo exacerbado e incessante de cocaína? Será o sentimento de amor por tudo, por todos, a extrema complacência, a adoração quase teológica de pequenos pormenores coloridos, sonoros ou palpáveis, a hipertermia e taquicárdia causada pelo ecstasy? Será mais um jargão técnico utilizado por gajos que adoram definir os outros, que escutam impávidos e serenos, abanando a cabeça afirmativamente, a explicação de cada golpe que demos na carne, de cada agrafo cravado, de cada excesso propositado ou atitude mais ou menos ilegal? Será um grupo marginal que queira fugir à standardização e à hegemonia falaciosa da moral, dos bons costumes, da vida familiar, do amor ao próximo, do respeito, dos impostos, das dívidas, das regras rígidas de socialização, dos argumentos decorados à nascença, da escolaridade obrigatória, da recriminação da puberdade, da carreira, das obrigações laborais, da responsabilidade, da resignação, do envelhecimento, e do culto mórbido da morte previamente marcada sem nunca ter vivido sequer um dia que fosse de uma vida inteira? Ou no fundo, talvez seja aquilo que mais procuro, a antítese de tudo aquilo que sou, talvez seja a paz, a tal normalização mortífera e enfadonha mas que ainda assim tenha pena de não ter, talvez a Eutimia ainda me venha a dar uma carreira, uma licenciatura, um amor incondicional, um automóvel, uma casa, a seriedade, a linearidade, e por fim, a morte pacífica com a consciência de tudo aquilo que fiz não causou mossa a ninguém. Talvez saiba de antemão que esta Eutimia que tanto quero será a negação completa de tudo aquilo que sou, daquilo que faço, digo ou penso, talvez saiba que no dia em que a atingir serei um zombie, um normalóide repugnante, um seguidista que se limita a balir.

Neste momento a sala voltou ao normal num metamorfose estranha, quase parecida com o efeito do LSD ou do robot líquido do "Exterminator". Senti o rubor da minha face, uma pinga de suor escorreu até à minha sobrancelha, e nesse preciso momento engoli em seco. Tinha acontecido o mais improvável, rasguei a pele que me cobre e saí ligeiramente, dei um vislumbre bem real do que sou, ou de quem sou, como queiram... Tinha perdido o controle, meticulosamente programado e encenado. Isto, não pode acontecer, seria entregar a minha cabeça de bandeja, tinha de arranjar depressa forma de dar a volta à situação. Aquele rosto de pânico e terror da Sal era bastante revelador, ela tinha visto o Diabo!
Esbocei um sorriso, daqueles tão amarelos como um girassol e disse em tom de gozo:

-..ou em alternativa, podes ir ver ao dicionário...

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