quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Em simultâneo

Multitasking: acto de andar de tasca em tasca com o intuito de beber e drogar até morrer ou esquecer, o que chegar primeiro.

A Ofélia disse-me à boca cheia, assim do nada:
-Os homens são incapazes de fazer duas coisa o mesmo tempo!
Foi literalmente à boca cheia, foi enquanto m'amava forte e feio.
Este pequeno lembrete desconchavado, inoportuno e descontextualizado da acção iniciou um processo de raciocínio lógico, um erro crasso para um homem em plena barrasquice. Tomando como verdadeira a frase proferida pela mantelhona, fui incapaz de manter a rigidez ao mesmo tempo que o meu pensamento deambulava por questões filosóficas, de destreza motriz e da percepção espaço-temporal.
Para manter a credibilidade tentei arranjar uma desculpa convincente, algo que não ferisse os sentimentos da moça. Não foi difícil, mesmo que tivesse dito que aquilo tinha acontecido por uma conjugação astral negativa, ela teria engolido. Em abono da verdade, até eu me convenci disto, é preferível ser crente e devoto do que estar em pleno na consciência, é preferível acreditar que há coisas que nem a própria razão explica, ou indo mais longe, acreditar em divindades incongruentes. Mas não! Tal como uma vítima de afogamento sofre de um espasmo da glote, eu também sofro de espasmos inconscientes quando me tento ludibriar. Posto isto, apenas disse à gaja que ela tinha razão, que eu era incapaz de fazer duas ou mais coisas ao mesmo tempo:
-Minha querida, é-me impossível recorrer à auto-mutilação e manter uma erecção. Lembrei-me que, para mim, isso é a antítese do prazer. Desculpa mas vou trocar-te por uma faca de serrilha. É que o aço inoxidável na minha carne é de longe menos doloroso que ouvir-te dizer "tipo:", "dissestes" ou mesmo os constantes auto-elogios ao teu loiro-barracas!!!
Depois desta desculpa, basei, e felizmente ela ainda se despediu de mim com um sorriso , a minha desculpa pareceu-lhe um elogio, e é nestas alturas que percebo que a ignorância pode ser, de certa forma, uma benção!

Diante do meu processador de texto penso nesta questão pertinente! Este mesmo software assenta num Sistema Operativo multitarefa, algo que à nascença me é negado, mas que contraponho com toda a gana! E este texto é a prova irrefutável disso mesmo, está a ser escrito enquanto executo as obrigações laborais, enquanto represento a personagem de homenzinho responsável que faz parte a população activa. E porque me mantenho eu nesta tormenta interminável? Porque tenho demasiadas coisas para fazer, não posso descurar as minhas obrigações para com os inocentes enquanto me tento convencer que tenho arcaboiço suficiente para aguentar a consequência da asneira, porque ser um desistente não é opção, nem viável nem aceitável... Tudo isto enquanto me debato num lamaçal psicológico que teima em apagar cada vez mais a memória que tenho da minha génese mais pura, e que a esta altura do campeonato já me é difícil manter o fio-condutor da personagem actual.
Tudo isto é pensado e executado enquanto tento também, de uma forma mais acessória ou supérflua, a minha felicidade e os meus quereres.

Em cada acção que executo, em cada frase que profiro, tudo isto está presente, tudo isto é tido em conta. E é por isso mesmo reajo com alguma violência quando me dizem que só sou capaz de fazer uma coisa de cada vez. Mas no fundo era isso que eu queria fazer, apenas uma coisa e a seu tempo,queria apenas acordar, amar os inocentes, escrever asneiras, amar alguém, viver a puta da vida e adormecer. Queria o mais básico possível, uma coisa de cada vez, mesmo sendo eu uma aberração da natureza, um gajo multitasking.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

White Noise

Detenho-me uns curtos segundos a olhar-me nos olhos! Embora a ânsia se apodere de mim, refreio-me para tentar de vez descortinar a tal de alma que parece estar nas minhas córneas. Nada! Não está lá nada! Apenas dois círculos castanho-verde que cada vez mais são ocultados pela negritude da pupila. Que vejo eu enquanto fico estático, e debruçado sobre a mesa onde está o espelho? Apenas a mossa da idade, a pele papuda das olheiras, as maçãs-do rosto com um aspecto inchado por força da gravidade e pelo facto de eu estar a olhar para baixo. O espelho reflete uma cor homogénea, rosada, mas no meio destaca-se um pequeno pormenor branco, muito branco. Estes breves instantes de alheamento são bruscamente interrompidos por um toque no lombo e uma voz meio nervosa:
-Despacha-te, foda-se!
Voltei a mim, assenti, peguei no tubo e risquei a linha. Dentro de breves minutos todas as minhas dúvidas existênciais iriam desaparecer, não tarda nada já iria ter todas as certezas do mundo, deixando para trás todas essas minudências que me tolhiam a capacidade de raciocínio lógico, a sensatez na tomada de decisões, a falta de amor-próprio, a ausência total de um "self"... A clareza cristalina iria surgir, e com ela também viria o magnânimo "Eu".

Este episódio deu-se há 5, 6 anos. Embora insignificante na altura, foi um ponto-chave na minha vida. Só uns tempos mais tarde tive consciência dele, numa daquelas alturas em que edito a "timeline" da minha vida, quando faço uns "inserts" aqui e ali. É a forma que tenho de recordar, de achar algum sentido. Pego nas memórias, alinho-as e tomo como ponto de referência cronológico, episódios marcantes. São os meus "keyframes", assim não há falhas de "raccord". São também estes mesmos "keyframes" que me permitem chegar a uma conclusão quando faço o resumo da história. Embora seja sempre tarde demais, permitem-me por vezes exorcizar ou compreender a causa do tormento do passado.
Este pequeno instante descrito foi quando percebi que a juventude tinha ido de TGV, foi quando percebi que já era um adulto retardado e que me negava a despir a pele da inconsequente adolescência. Foi quando conheci um outro "eu" demoníaco, assombrado e completamente desconhecido.

Hoje tive um "keyframe"! Novamente em frente a um espelho, mas este estava pendurado na parede e eu estava sozinho. Nada de acessórios, comportamentos desviantes, companhias bizarras, estava apenas na banalidade do acto de lavar as mãos depois de ter mijado.
Eu e o pseudo-silêncio. Pseudo, sim, há sempre som, aquele ruído que se espalha em todo o espectro da frequência audível, aquele silvo que ignoramos, aquele "sssssssssssssssssss"... Só mesmo no vácuo nos livramos dele, algo intangível, humanamente impossível mas que ainda assim gostaria de conhecer.
Olho para mim, é inevitável, mas sem contemplações, sem qualquer tipo de vislumbre de algo que está para lá do óbvio da realidade, olho-me porque é um reflexo natural, tal como é o pentar com os dedos, o afagar de cabeça, o certificar que existe ainda amor-próprio. É neste preciso instante que vislumbro uma tonalidade capilar diferente, algo novo. A hegemonia do marrom foi assaltada pela clareza cristalina de apenas um fortuito branco. Apenas um... Mas parece que há mais!

Para os meus contemporâneos, os gajos que assistiam ao Hino Nacional no final da emissão, ou para os de faixa etária mais recente, quando desligam a ficha da antena da TV, informo que "White Noise" é o som ruidoso que ouvem, o tal "ssssssssssssssss".
O branco fascina-me, é supostamente uma cor de paz, tranquilidade, mas eu venero-o, traz-me recordações, conclusões, ânsias, claridade, alegria, tristeza e também me avisa que já sai do horário nobre, que a emissão entrou agora na recta final. Seguirão os programas da treta, o resumo das notícias, o hino, a mira técnica e finalmente o "white noise". Depois disto não sei, ninguém sabe, mas quero acreditar que é a paz, o branco e o silêncio absoluto.